Opá, isto é cedo comó caraças...
e eu aqui acordada como se fosse dia de trabalho!Quando eu era criança, véspera de Domingo de Páscoa era mesmo dia de trabalho! Aliás, toda a semana era porque a minha Mãe achava sempre que devia fazer as limpezas da Primavera quando eu estava de férias. "Tens de aprender a fazer estas coisas, um dia podes precisar". Eu resmungava sempre, nunca gostei de serviços domésticos e achava uma parvoíce estar sempre a fazer as mesmas coisas. É bom acrescentar que tínhamos na altura uma empregada efectiva e uma senhora que fazia umas horas ao sábado, pelo que andar a escovar cortinas e a lavar vidros me parecia uma verdadeira tortura. Mas a Mãe não admitia razões e "tens que aprender e acabou a conversa!" Mal pensava ela que empregada doméstica seria coisa do passado em pouco tempo, e que a nossa Isabel e a Sra. Mariana, emancipada pelo 25 de Abril e pelo casamento uma e pela doença outra, nos diriam adeus para não mais voltarem. Ficaram-me o saber e algumas recordações fantásticas destas duas mulheres que me faziam todas as vontades e arranjavam sempre maneira de iludir as ordens da minha Mãe no que toca a cortinados e chão encerado.
Mas Sábado de Aleluia era um dia especial. A Avó Palmira vinha juntar-se a nós nos preparativos para Domingo. Trazia sempre companhia. As outras mães e avós queriam sossego para limpar e cozinhar e quando a minha passava a caminho da casa do filho, havia sempre mais que um amigo meu que a acompanhava para fugir à neura materna. Porque na minha casa mais um gaiato nunca era problema :)
Ainda cedo, a Mãe saía para o mercado com a Isabel e voltavam com sacos cheios de legumes frescos. Pelo menos dois com ervilhas... colocava-os na marquise, e os miúdos sentados em banquetas de madeira começavam a tarefa de descascar aquilo tudo. Era uma alegria. As vagens estalavam viçosas, e era um fartote de comer bolinhas, às escondidas porque a Mãe dizia que não se podia comer sem lavar primeiro, fazia lombrigas. Que me lembre nunca a ameaça se tornou real doença! Eram outros tempos... tínhamos defesas, ou então era como dizia a Avó "ó Mariazinha, deixe lá! São tão pestes que nem os bichinhos os querem".
O almoço era sempre um guisado de ervilhas com ovos e rodelinhas de chouriço caseiro, manjar dos deuses servido depois de pormos a mesa no quintal, debaixo do enorme limoeiro que nos protegia do sol primaveril, que "no Alentejo aquece bem cedo e o João está habituado ao clima brando de Lisboa"... "ora, ele precisa é de ganhar uma corzinha naquela bochecha!"
Comíamos depressa, regalados pelo sabor e já a adivinhar o que seguia. Depois do almoço ia tudo para a cozinha. Os alguidares esperavam, com a massa dos folares a querer transbordar. Cobria-se a mesa grande de farinha e a Mãe deixava-nos sempre fazer o nosso folar. Uma bola de massa com cheiro de erva-doce e aguardente, um ovo cozido no meio. Fazíamos depois um rolinho de massa que se colocava por cima em forma da letra inicial dos nossos nomes, tudo pintado com gema de ovo. Era uma risota porque a Cris punha sempre o C ao contrário, e depois zangava-se e havia farinha por todo o lado... e era uma correria à volta da mesa. Ao fim da tarde, as mulheres da casa sentavam-se no quintal, os bolos coziam no forno. Um cheiro doce pairava no ar enquanto corríamos de um lado para outro à procura dos ovinhos de chocolate que a Isabel tinha escondido no meio das flores e arbustros.
Outros tempos... e hoje quando entrei na cozinha e vi o folar comprado no supermercado senti saudades do aroma de erva-doce misturado com a marinada do assado de borrego na cozinha da minha Mãe, pareceu-me ouvir risos de crianças e vozes de mulheres atarefadas, quase pude sentir na boca o gosto das ervilhas doces que descascava e das amêndoas cobertas de açúcar torrado que a Avó trazia no saco de palha entrançado pela Bivó Carolina que tinha uma paciência do outro mundo... outros tempos.