quarta-feira, junho 13, 2007

Até que a morte nos separe II

Casámos num dia de Verão, com tanto calor que o vestido, a sua cauda e o véu, o fotógrafo a exigir as abomináveis poses românticas, os convidados e os beijos e votos de felicidade, e até mesmo o noivo no seu smoking e calça de fantasia irrepreensíveis, pareciam saídos de um qualquer pesadelo de revista cor-de-rosa. Um dia de desconforto, um dia ao qual pude sobreviver ora colocando-me atrás da câmara, dirigindo actores e figurantes, ora divertindo-me a observar os muitos momentos hilariantes daquela comédia.
Antes de sair de casa a minha mãe ainda disse, um pouco a medo,
- Ainda estás a tempo! Sabes que vais cometer o maior erro da tua vida, não sabes?
- Sei. É problema meu, mãe! Deixa-me dar com a cabeça na parede, partir-me toda se assim tiver que ser. Deixa-me fazer isto, por favor!
- Faz, faz o que queres mas depois não te queixes!
- Podes ter a certeza que não me vou queixar. E muito menos a ti.
Acompanhou-me no carro, entregou-me ao pai que me levou até ao altar. E perante um deus no qual acreditava à minha maneira assumimos um compromisso que nenhum dos dois tinha a certeza de querer verdadeiramente.

A celebração religiosa foi encantadora, cheia de pequenos detalhes e significados cuidadosamente escolhidos - Grava-me como um selo no teu coração, como um selo no teu braço, porque o amor é forte como a morte e a paixão é violenta como o abismo. Os seus ardores são setas de fogo, são chamas do Senhor. As águas torrenciais não podem apagar o amor, nem os rios o podem submergir.* - nada naquela igreja foi obra do acaso. As minhas amigas reconheceram o meu toque em cada flor, em cada palavra pronunciada, algumas choraram por mim, pelo que sabiam de mim – O amor é paciente, o amor é benigno; não é invejoso, não é altivo nem orgulhoso; não é inconveniente, não procura o próprio interesse; não se irrita, não guarda ressentimento; não se alegra com a injustiça, mas alegra-se com a verdade; tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor não acaba nunca.** - ou talvez por elas mesmas. Só me ocorre uma palavra, comovente.

Já o mesmo não se pode dizer da festa… mundos diferentes na busca infrutífera da desejada coincidência, não havia nada a fazer. Apesar das minhas recomendações o bolo de noiva tinha o patético casalinho que imaginei a fugir dali deslizando de camada em camada de açúcar glacé e aterrando, por fim, depois de cinco andares de florzinhas, rebites e tules, completamente descompostos, entre uma taça de mousse de chocolate e uma travessa de arroz-doce. Os convidados insistiam nos beijos, reclamavam o leilão da liga da noiva… o champanhe jorrava numa cascata entre frutas e camarões, e eu a estalar os dedos numa impaciência cada vez maior.

Não tivemos viagem de núpcias. Não quis que os pais pagassem as despesas e como não havia muito dinheiro a viagem acabou por ficar para melhores tempos, que nunca chegaram.
Não fizemos amor nessa primeira noite de casados. Apenas dormimos juntos pela primeira vez, o cansaço imenso a pedir o abandono do corpo na partilha de uma intimidade desconhecida. Primeiro abraçados, depois virados de costas um para o outro, levámos algum tempo até nos habituarmos à cama, o Pedro queixava-se de dores nas costas e fomos mudando de lugar. Eu à esquerda e ele à direita. Mais tarde mudámos outra vez. E tudo na nossa vida em comum foi assim, sempre à procura do lugar que legitimamente nos pertencia naquele casamento.


* Cântico dos Cânticos (Cant. 2)
** Epístola de S. Paulo aos Coríntios (1 Cor. 12)


Conto original de Conceição Alves C. (para continuar em breve...)

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