domingo, maio 13, 2007

Capítulo Primeiro

Sentada no sofá da sala, a cabeça cheia de nada ou de um tudo que mais valia fosse nada, o livro nas mãos e os olhos postos além da realidade fantasiada no ecrã da televisão, deixava passar o tempo através de um túnel que parecia não ter fim à vista. Há momentos na vida em que simplesmente não há amanhã. E o vazio nem sequer incomoda porque a única coisa que existe para o preencher é uma dor sem nome.
E, de repente, num vislumbre de dia, um som familiar entrou-lhe pelos ouvidos. Abriu os olhos - ou será que estavam já abertos? - e as imagens na televisão despertaram-lhe os sentidos. As memórias avivadas pelo som desenharam um sorriso no rosto fatigado: Que seria feito dele? De que cores seria o seu mundo? Que caminhos percorrera, teria olhado as flores na berma e encontrado coragem para as levar consigo e responsabilizar-se por elas?
O som continuava a acariciar-lhe os ouvidos e a arranhar-lhe o coração dormente. Entrou por momentos no jardim secreto por trás do espelho brilhante dos seus olhos. E lá estavam os dois, sentados nos baloiços que tinham pendurado da árvore onde o gato malhado de mistério se ria deles e da sua inocência. Sorriu outra vez, sacudiu a preguiça e o desencanto com um encolher de ombros, fechou a porta que do lado esquerdo leva ao jardim, pousou o livro e levantou-se. Pensou que todas as escolhas feitas na sua vida não tinham passado de erros crassos. Pensou que não devemos censurar-nos tanto. Que algures, dentro de cada um, deve existir a capacidade de nos perdoarmos a nós mesmos, e de, a partir dos escombros causados, tentar a reconstrução diária da alma... e entrou na cozinha para cumprir mais uma vez o ritual da preparação do jantar porque há razões mais fortes que qualquer desejo de fuga e os filhos deviam estar a chegar.


Conto original de Conceição Alves C. (a continuar um destes dias...)
Imagem: Alice in Wonderland, The Cheshire Cat by Lisa Evans (aqui)

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