quinta-feira, junho 14, 2007

Até que a morte nos separe III


… …
- Não estarás a falar a sério, pois não?
Estava, estava pois! Ganhar o suficiente para que a minha mulher não precisasse ter um emprego era um dos meus objectivos. Ela olhou-me como se eu tivesse antenas e pele verde e acabasse de sair de um disco voador. Aqueles grandes olhos castanhos riam despudoradamente das minhas ideias, as sobrancelhas arqueadas a dizer do espanto que lhe causavam as minhas ideias.
- Bem, nem o meu pai pensa assim. A questão não é precisar trabalhar. Não é o dinheiro. É a satisfação, a realização pessoal. Sabes a que me refiro? Ou achas que uma mulher só se realiza sendo esposa e mãe? Não contes comigo para esse papel. Posso ser esposa, quero ser mãe um dia, mas nunca ficarei por aí. Nunca abdicarei dos meus sonhos. Tu e eu somos iguais nos nossos direitos e deveres.
- Só queria que ficasses comigo sempre. Não fales comigo como se eu fosse um dos teus amigos do partido. Podias estudar aqui…
- Estás farto de saber que aqui não há o curso que quero. E além disso já concorri à Clássica. E com as notas que tenho sei que vou ficar.
Senti o coração a bater na garganta. Ela já tinha decidido, sem me perguntar nada, sem me dar nenhuma explicação!? Estava apenas a participar-me que ia para Lisboa. Tive a certeza que a ia perder. Não podia competir com os geniozinhos universitários que ela ia ter aos pés. Já não bastavam as férias sempre longe de mim. Sabia que a ia perder.
- Pedro poupa-me, por favor! Eu gosto de ti, sabes disso.
- Sei… mas mostra-me.
E abracei-a. O corpo dela respondia sempre às minhas vontades. Era quando a sentia minha, embora desconfiasse que nunca a poderia ter completamente, que parte dela nunca se entregaria e menos a mim. Tinha a certeza que quando a beijava ela desejava que eu fosse um dos amigos com quem falava de política e literatura e viagens e de todas essas coisas que a fascinavam, queria ser capaz de acompanhar os pensamentos dela. E desdobrava-me em carícias. Queria que as minhas mãos lhe entrassem na pele. Ela afastava-me sem convicção.
- Quero fazer amor contigo!
E ela encostou-se mais ao meu corpo e deu-me os lábios entreabertos a beijar. Era Agosto, e o luar e ela a fugir, a adiar a dor da primeira vez. Afinal era mesmo a primeira vez. As conversas que me tinham enchido os ouvidos não passavam de mentiras sórdidas. Com amigos assim, quem precisava de inimigos?! E ela sempre tão digna, tão acima de todas essas coisas mesquinhas. Amei-a mais nessa noite de lua cheia, amei-a entre todas as mulheres, mais que a qualquer outra porque a queria minha mas não consegui que o fosse. Adormeci envergonhado pela minha falta de coragem. Devia ter sido capaz ir até ao fim mesmo sabendo que lhe doía.
No dia seguinte entrou no quarto e acordei com a sua boca na minha, a acender-me o desejo de novo. E de uma vez só, abriu as pernas por cima de mim e enterrou-me em si com um gemido de dor. Ficou imóvel durante algum tempo, a respirar fundo, e não pude encontrar as palavras que devia dizer-lhe naquele momento. Senti a vergonha a escaldar na cara outra vez.
- Era isto que querias? Supões que é isto que me vai prender a ti? Pois escuta-me bem, espero que o que acaba de acontecer não signifique um compromisso que nos ate se não o desejarmos. Nunca será a carne a dar-nos sentido. Serei tua enquanto o amor durar, nem um segundo mais nem um segundo menos. E de ti apenas quero a verdade desse amor.
A surpresa paralisava-me. Queria dizer-lhe que a amava, que nunca poderia viver sem ela, mas não quis cair-lhe aos pés, mostrar-lhe fraqueza e perdê-la para sempre. Tinha sonhado aconchegá-la nos braços e limpar-lhe as lágrimas, prometer-lhe nunca a abandonar.
- Ana, és o meu amor. És a minha mulher. Vou ser…
- Chiuuu, não digas nada! Não faças promessas que não sabes se vais cumprir. Também és o meu amor… anda, estás à espera de quê? Vou ser eu a ter o trabalho todo?
E ria, creio que ria do meu embaraço, do medo que adivinhava nos meus olhos. E fui eu que encostei a cabeça no peito dela, a ouvir-lhe o coração a bater descompassado ainda, a sentir-lhe a pele quente. Foi ela que me abraçou. Era um miúdo no colo dela. Hoje sei que não devia ter sido assim.
… …

Conto original de Conceição Alves C. (continua...)

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