terça-feira, maio 30, 2006

Mais (des)Educação

Quem me visita já deve ter percebido que sou professora. De Inglês. Há 22 anos. Por gosto e vocação. Porque há 22 anos atrás saí da Universidade Clássica de Lisboa e fui dar aulas na Escola C+S da ilustre vila de Arraiolos. Porque, se alguma dúvida tinha sobre a escolha profissional feita, esse primeiro ano de docência me convenceu que valia a pena enveredar pelo caminho, difícil mas compensador, da formação de jovens. E quando digo compensador não me refiro obviamente a remunerações, nem a ajudas de custo de qualquer espécie, porque todo o material que uso para exercer a minha profissão, desde a gasolina até à mais simples folha de papel, me sai do bolso.
Como professora progredi na carreira. Tal como todos os meus colegas. Não por mérito, que esse nunca o vi avaliado, mas por anos de serviço prestado. Não subi nem mais nem menos que outros. É assim o actual sistema de progressão. E devo dizer que, muitas vezes, me senti injustiçada. Trabalhar muito, preocupar-me muito, ter alunos que conseguiam classificações excelentes em exames nacionais, dar aulas extra que ninguém me pagava, estar disponível para acompanhar os alunos sempre que estes o solicitassem, apresentar materais interessantes, ter uma boa (eu diria mesmo excelente!) relação com os meus alunos e com os seus Encarregados de Educação, cumprir programas, empenhar-me como directora de turma, chegar a ir a casa dos Encarregados de Educação que não iam à escola... nada disso me deu uma subida mais rápida ou demorou a subida de outros que não fizeram o que eu fiz. Na classe docente há incompetentes como em todas as outras classes. Subiram, tal como eu, e isso é injusto.
Só posso, então, alegrar-me com uma avaliação séria do desempenho dos professores. Resta saber o que se entende por avaliação séria.

A opinião pública está neste momento dividida com esta novidade extraordinária da avaliação de professores poder vir a ser feita também pelos Encarregados de Educação. Eu digo que esta nem é a questão que mais me preocupa na proposta de alteração do Estatuto da Carreira Docente. Muito menos me preocupa prestar provas para avaliar o meu conhecimento científico ou pedagógico, embora nunca tenha visto um médico, um administrador de empresa, ou um senhor ministro, a fazer tal coisa. (Coragem política seria obrigar os senhores que levam para casa milhares de euros do erário público em salários e reformas principescas a prestar provas sobre a sua real capacidade! Pois, mas isto é apenas um desabafo.)

Esta é apenas a ponta do iceberg! Uma ponta, já de si meio anedótica, num país onde as escolas são entendidas como meros depósitos de crianças. Num país onde as crianças que temos são o fruto natural das famílias e da cultura de desresponsabilização que temos. Como é possível que os pais de um país onde grassa a iliteracia, onde as reuniões com encarregados de educação são o deserto que qualquer director de turma bem conhece, onde tantos se demitem da sua responsabilidade na educação dos filhos e tentam compensar a sua ausência com excesso de indulgência, onde a inveja mesquinha e o gosto pela aparência constitui a base das relações interpessoais no trabalho e na sociedade, sejam agora co-responsáveis pela avaliação de um profissional cujo desempenho conhecem apenas depois de filtrado pela opinião de uma criança?
Não estou a ser arrogante... estou apenas a constatar factos incontornáveis. Este ano, pela primeira vez na minha vida profissional estou a ter problemas de relacionamento com alunos das minhas turmas. A prová-lo está o meu carro, por exemplo, que tem riscos de uma ponta à outra que já nem conto. Imagino a opinião que os pais desses alunos terão sobre mim. Imagino como avaliam o cumprimento de um programa (que desconhecem!) quando os filhos fazem aviõezinhos com as fichas de trabalho que lhes preparo. Depois de 22 anos de ensino sem qualquer espécie de problema disciplinar, tenho enfrentado este ano toda a sorte de situações provocadas por crianças entre os 12 e os 15 anos. E não estou a falar de conversa nas aulas, falo de crianças que escrevem coisas como "és uma p***, queres é car****. odeio-te" e outros mimos semelhantes nos comentários de um blog que criei para os ajudar a estudar inglês num suporte que reconhecidamente lhes é agradável. São os pais destes alunos que vão avaliar o meu desempenho? Ok, sejam... não é o único elemento da minha avaliação. E por isso digo que não é o que mais me preocupa.

Aconselho vivamente a leitura do resto da proposta de alteração do ECD. A todos. Também aos meios de comunicação que tantas vezes ajudam a deitar lenha nas fogueiras deste país. Também aos pais, muito mesmo à Senhora Presidente da Confederação das Associações de Pais, que diz saber muito bem quem são os professores que gostam dos seus filhos. (Já agora será que esta senhora também exige este "amor" ao seu médico de família, por exemplo. É que ele trata da saúde do pessoal, é bom que goste mesmo de nós.)
Eu li, e compreendo os meus colegas que dizem estar na disposição de não reprovar nem mais um aluno. Se me é permitido brincar um bocadinho com a delicadeza do momento, assim acabamos definitivamente com o insucesso escolar. Às tantas até podemos alargar as sugestões maravilhosas feitas à classe docente feminina pelo Economista Manuel Ribeiro e começar a fazer sessões de strip-tease (falo para as colegas que ainda não pertencem à categoria de estafermos, claro!), ou passamos a dar aulas práticas de Educação Sexual (no meu caso, em Inglês!...) ou de Técnicas de Engate no Messenger, ou ainda de Moranguices Aplicadas, e acabamos de vez, também, com o absentismo dos alunos. Para melhorar o desempenho talvez se possa arranjar uma ou outra acção de formação contínua ministrada por alguma senhora que reconhecidamente tenha progredido numa ou outra empresa privada, na horizontal, como é óbvio, porque certamente é agora que o compadrio e os favores a alguns se vão fazer sentir também entre os professores. Como já li por aí nos comentários às notícias, o hábito de oferecer um presentinho à professora que a certa altura considerámos indignante, poderá agora ser reavivado, mas ao contrário... seremos nós, agora, a trazer o presuntinho lá da terra para oferecer aos Encarregados de Educação e outros avaliadores mais difíceis de contentar. E enquanto for só o presunto...


PS: Farão o favor de perdoar o humor duvidoso das últimas observações, não passa de pura angústia, puro desencantamento :(