sábado, maio 19, 2007

Capítulo Quarto

… …
Caminhava sempre muito direita, seios erguidos e olhos postos no horizonte, o passo rápido e decidido. Nunca desviava o olhar do seu caminho. Saía com a desculpa de ir passear a cadela quando via os rapazes do bairro sentados na relva como num tapete verde que, ditas as palavras mágicas, pudesse levantar-se no ar e desaparecer em direcção às estrelas do final da tarde. Sabia que eles a olhavam curiosos, sabia que lhe seguiam os movimentos. Por isso passava por eles petulante, as ancas numa provocadora sensualidade semi-adolescente, sem sequer lhes dirigir um olhar.
E num desses fins de tarde a pergunta surgiu por entre os risos abafados – Muerde? – A surpresa incomodou-a mas depressa se recompôs. Mas com quem pensava ele que se metia? Como se não soubesse da piadinha sem graça que viria a seguir… voltou atrás já com as garras de fora, olhou-o no fundo dos olhos, respondeu que não sustentando o olhar e, antes que ele pudesse dizer fosse o que fosse, rosnou-lhe um pero yo sí! que o deixou sem palavras. E seguiu em frente no seu passo habitual, sem se importar com as gargalhadas divertidas da pandilla.
Ele deve ter-se sentido desafiado e a partir daí cumprimentava-a e um dia até ganharam coragem para começarem a conversar. A Conchi conhecia o pessoal e dizia que ele era un chico impecable, ela concordava. Perguntou-lhe se gostava dele, e ela lançou-lhe um não repleto de espanto. Nunca tal coisa lhe passara pela mente, estranhou a pergunta da amiga mas não dedicou muito tempo a pensar no assunto.
No entanto, era com ele que se sentava nos baloiços do parque para falarem durante horas a fio. Foi por ele que se deixou convencer a ir a uma festa do PSOE, ela tão de centro-direita, foi ele que a levou de bar em bar pelas ruas boémias de Madrid, caminhando no empedrado humido entre paredes escurecidas por décadas de descuido, aqui e ali cortadas pela luz dúbia dos locales cheios das conversas intelectuais dos que perseguiam o sonho de ser artistas e dos sons das guitarras espanholas, a mão envolta na mão dele, segura e protegida. Quando voltava a Portugal era dele que sentia saudades e era a ele que escrevia cartas cheias de sonhos, projectos e cumplicidades. Quando a mãe mudou de casa foi a ele que convidou para uma visita. E por fim, e apesar do namorado que tinha em Portugal, foi a ele que permitiu o abraço envolvente e aquele beijo do qual guardara para sempre a doçura.
Conto original de Conceição Alves C. (continuará...)

Etiquetas: