sexta-feira, maio 18, 2007

Capítulo Terceiro

E o Carnaval quase a chegar. Não gostava de carnavais, muito menos de carnavais trapalhões ou de imitações de carnavais brasileiros, não conseguia perceber que graça tinha desfilar uma quase nudez em pleno Inverno na tentativa de trazer a Portugal os costumes e a alegria do outro lado do mar, incomodava-a a forma tola como o seu país se deixava influenciar e assimilava as tradições de outros em deterimento das suas - um dia ainda havia de ir a um verdadeiro Carnaval, ao do Rio de Janeiro não, ao de Veneza que se aproximava mais das suas fantasias de ter vivido outra vida noutro século, muito antes deste.
Tivera a sua dose quando as crianças andavam no colégio... noites sem dormir a recortar moldes, placas de espuma e tecidos coloridos, costurar, pintar, colar e montar pinguins, moranguinhos, joaninhas e guerreiros do espaço. Felizmente já estavam crescidos e nenhum deles apreciava máscaras. Era um alívio não ter que disfarçar um certo mau humor associado à época por causa deles. Os três falavam do mesmo aborrecimento, da chatice que era levar com balões de água ou suportar o mau-cheiro dos sprays e das bombinhas que os colegas espalhavam na escola. "Brincadeiras parvas!", diziam numa arrelia.
Falavam dos tempos em que viviam no seu Alentejo, mas da festa recordavam apenas a bivó debruçada sobre o grande alguidar onde ia juntando os ingredientes das filhós e azevias de grão, as mãos já cansadas mas ainda firmes a enterrarem-se na farinha, o cheiro de erva-doce, canela e aguardente a encher a casa e o amor que ela deixava fermentar junto com a massa, tudo tapado com um pano branco imaculado... o que se riam ao vê-la beber um copito de anis, enquanto estendia a massa com o rolo de madeira em cima da enorme mesa da cozinha "A bivó vai ficar com os copos, vai sim!" E fugiam, aos saltos pelo corredor, a adivinhar a ameaça da colher de pau quando ela se fingia ofendida. Chamava-os desde a cozinha assim que acabava o recheio de grão, "Venham depressa, vamos começar a fritar as azevias, quem quer rapar o tacho?" Nunca mais tinham comido pastéis de grão como os da Bivó. Bem tentara pôr em prática a receita, mas perante o desalento dos filhos, desistira. Os sabores e os aromas que povoavam a sua memória aí ficariam para sempre...
Abriu o outlook com gesto descuidado para ver o correio recebido entretanto. Alguns e-mails de amigos a desejar bom Carnaval, o mesmo de sempre. Os olhos percorriam a lista de remetentes e ia seleccionando o que era para apagar sem sequer abrir. Pedro Pacheco? Quem é este? Não tinha qualquer indicação de spam e não fazia parte da publicidade que recebia habitualmente. Resolveu abrir. E ali estava o nome dele diante dos seus olhos, a morada de uma clínica e um número de telefone de Madrid, e os votos de que a informação fosse correcta. Já nem se lembrava que tinha pedido para o procurarem. E agora? Que fazer com aquilo? Mas que raio de ideia, como se não tivesse coisas suficientes para pensar!
Escreveu a morada e o número num papel e guardou-o com os pensamentos que se desenrolavam no seu cérebro quase à velocidade da luz. Sentiu-se bem, podia tentar falar com ele ou não, mas não estava já condicionada pelo facto de não ter forma de o fazer. Afastou uma ligeira insegurança, um quase-medo de que ele não se lembrasse dela. Médico ginecologista..., afinal sempre tinha seguido medicina. Lembrou-se de tantos sonhos partilhados, e encheu-se de orgulho por ele que os tinha perseguido e tornado realidade. Imaginou-o num consultório de cores claras a observar as pacientes, os olhos brilhantes e atentos, aqueles olhos amendoados que tantas vezes mergulhavam nos seus tentando adivinhar-lhe a alma, o cabelo negro e rebelde. Imaginou-o a medir grandes barrigas grávidas, a observar úteros e a palpar mamas. Adivinhou-lhe a paciência, o toque suave, a doçura na voz, a tranquilidade inspiradora.
Tinham passado 24 anos desde a última vez que se viram. Não podia ter certezas mas uma certa intuição dizia-lhe que, tal como ela, ele não tinha mudado assim tanto.
Conto original de Conceição Alves C. (continua...)

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