domingo, junho 17, 2007

Até que a morte nos separe IV

Os primeiros meses passaram, o Pedro começou a trabalhar por conta própria no sótão da casa e algum desafogo económico dava-nos tranquilidade. Eu não conseguira entrar em estágio por falta de vagas, mas trabalhava relativamente perto e tudo caminhava sem dificuldade. Comprámos o nosso primeiro carro.
Eu queria muito ter uma filha. Mas mesmo seguindo à risca todos os conselhos do obstetra o sonho parecia não se realizar nunca. Possivelmente a ansiedade não ajudava muito. Temia que o Pedro recusasse fazer os testes de fertilidade. E, de repente, em Fevereiro, enquanto a minha atenção se concentrava em encontrar forma de não lhe ferir a sensibilidade masculina, aconteceu. Estava grávida finalmente! A caminho da Primavera e dentro de mim havia vida.
- É um rapaz, - dizia ele aos amigos. – a habilidade não é p’ra todos!
E eu sorria o secreto sorriso interior que brotava da certeza absoluta, era uma menina, a minha menina.
O meu corpo mudava de dia para dia, mas a falta de apetite não me deixava comer e perdia peso. O médico confirmou o risco de aborto. Exigia repouso. E eu não parava, sentia-me cheia de um entusiasmo transbordante. Agoniada, cheia de dores nos músculos em esforço, mas tudo me parecia natural e simplesmente maravilhoso. Todos os dias me observava longamente e registava todas as pequenas alterações extasiada pela magia que se produzia dentro de mim.
E depois dos primeiros tempos de euforia, e sentindo-se ameaçado pela possibilidade de um desgosto, o Pedro protegeu-se quase ignorando o que se estava a passar. Parecia ter medo de me tocar. Escusava-se a sentir o bebé mexer - nunca quis escutar o coração forte que, contra todas as marés, continuava a bater e a lutar pela vida - mesmo depois de a gravidez ter sido considerada viável.
Pela primeira vez na minha vida senti que estava sozinha. E reconhecer a extensão da minha fragilidade foi um sentimento desagradável, tão desagradável que nunca mais deixei de o esconder até de mim mesma... a pior solidão é sem dúvida a que sentimos quando estamos acompanhados.
Hoje sei que ter escolhido tal pai para tão desejada filha não foi um facto relevante. Amava-o talvez, mas era apenas um pai, um acaso – eu estaria lá e sempre seria mais que suficiente. Apesar de tudo tinha uma confiança admirável no futuro, uma força que vinha de dentro e que crescia a cada movimento dentro de mim.
Entre nós a vida nunca mais foi igual. O Pedro evitava qualquer contacto, talvez por ignorância, talvez porque o mistério da vida dentro de mim o aterrorizasse. Passava as noites fora de casa com amigos, começou a beber demais. E nunca mais parou.
Pensei que seria uma chuva de verão... justifiquei a mim mesma todas as atitudes dele, e quis acreditar que tudo voltaria ao normal quando a Maria nascesse.


Conto original de Conceição Alves C. (continua num dia próximo...)

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