terça-feira, maio 22, 2007

Capítulo Quinto

A vida afastara-os. Nunca percebera bem porquê nem como.
E agora, de pé frente ao telefone, hesitava também sem perceber porquê. A filha animou-a - Vá, liga. Se não ligares nunca vais saber se é mesmo ele e vais odiar-te por não teres tido coragem!
Ligou. Do outro lado, a recepcionista da clínica respondeu num tom de voz mecanizado, el doctor no está en la consulta hoy. Si quiere llamar mañana o dejar su contacto para que la llame, e ela a pensar que era uma chatice, e ela a pensar que amanhã sabia lá se ia ter coragem de ligar outra vez.
Mas ligou. Já que tinha começado o melhor era ir até ao fim. A recepcionista pareceu-lhe mais humana que no dia anterior. Podia até sentir-lhe o sorriso do outro lado da linha, el doctor pidió para pasar la llamada en seguida. Uns segundos de espera que lhe pareceram demasiado longos e logo depois aquele Hola, que tal estas? Hace mucho tiempo… Era ele, não restavam dúvidas, reconheceria aquela voz mesmo que tivessem passado cem anos. Te acuerdas de mi?, Como olvidarte mi querida amiga, e as palavras dele a chegarem expiradas aos seus ouvidos. Sentia-lhe a respiração e sabia que ele estava tão confuso como ela. A cascata de emoções que viajava pelo seu corpo a velocidade estonteante não a deixava pensar com clareza. De tal forma que, por momentos, sentiu-se enjoada. Há tanto tempo que não falava espanhol, faltavam-lhe palavras. Mas a voz dele soava carinhosa nos seus ouvidos, tu voz está igual y sigues hablando un español perfecto. E foi-se deixando embalar… como antes ele tinha o poder de a fazer sentir segura. Há pessoas que despertam o melhor que existe nos outros e ele era uma dessas pessoas.
Falaram durante muito tempo. Não sabe quanto ao certo. Nem importa. Tinha milhares de coisas para lhe dizer e confundia-se ao mesmo tempo que tentava parecer o mais natural possível. Ele lembrava-se de coisas que ela tinha escondido no mais fundo de si e já tinha esquecido exactamente onde. Custava-lhe remexer no passado e custava-lhe despedir-se. Mas ele tinha que voltar à consulta. Trocaram contactos, números de telemóvel, endereços de e-mail… garantiram um ao outro que não se deixariam perder outra vez. Besos, hasta luego… E desligaram. Pensou que afinal este era mesmo o seu século de eleição, nunca se teriam perdido um do outro se naquela época tivessem a parafernália tecnológica de hoje à sua disposição.

A filha levantou-se, Acordei a ouvir-te falar espanhol! Ena, ena, já falou com o seu amigo…, e riu-se de a ver assim atarantada. Durante horas andou pela casa sem saber bem o que fazer. O seu coração batia ao compasso dos centésimos de segundo no relógio e não sabia se era alegria ou apenas o tempo que passava.
Tinha que falar com alguém, contar o que estava a passar, largar lastro, ou não poderia manter o barco à superfície. Mas isso é história de filme, disse a Ana que tinha acudido à sua chamada para tomarem café. Concordou que era bonita a história, se é que havia história, porque tudo estava em aberto e dependia do que, daí para a frente, decidissem fazer.
Sentia vontade de largar tudo e ir a Madrid surpreendê-lo com mais uma ousadia. O seu espírito intenso de borboleta que vive tudo num só dia, a forma como deixava o coração adiantar-se a ela própria, era para ele algo incompreensível e admirável. Ele sempre tão racional, com os pés tão bem assentes no chão. E ela a alçar voo por tudo e por nada como se não houvesse amanhã. Mas era loucura a mais. Não podia fazer tal coisa. Tinha que controlar aquele querer tudo para ontem.

Ficou-se pelo envio de uma pequena mensagem para o telemóvel dele. E durante quase um mês reviveram o passado em conversas intermináveis, afundaram-se no tempo que tinham perdido, remexeram feridas mais ou menos cicatrizadas porque a vida não se compadece de ninguém e ambos tinham a sua conta de histórias vividas por separado. Passaram noites unidos pelo frio de repente aquecido de um computador ligado à internet, e ao som da mesma música olharam juntos o nascer do sol, ela em Lisboa, ele em Madrid. Porque me llamaste? perguntou ele. Não sabia responder.
Original de Conceição Alves C. (...continua)

Etiquetas: