sábado, maio 26, 2007

Capítulo Sétimo

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Naquela noite há mais de vinte anos, ao jantar, olhavam-se como a tentar adivinhar os pensamentos um do outro. Registavam mutuamente os gestos um do outro, cada movimento da boca ao mastigar, o brilho do olhar. Algo indefinível cruzava o ambiente, a tensão dos momentos que antecedem os grandes acontecimentos instalara-se à mesa com eles, invadia-lhes os músculos e impedia a conversa de fluir como era habitual neles.
Saíram num passeio breve, entraram num bar porque ela não vivia sem café e deixaram-se ficar com a música a entrar-lhes pelos ouvidos e a companhia um do outro a preencher todos os espaços vazios que traziam na alma ainda virgem. Pela primeira vez sentiam o apelo do corpo, vá-se lá saber porquê naquela noite, depois de tanto tempo de amizade inocente. Ele pousou-lhe o braço sobre os ombros mas desta vez sentiu que o perfume dela lhe entrava pelas narinas e se espalhava por todas as suas veias e artérias deixando um rasto de calor. Era um perfume suave que contrastava com a natureza quase sempre agreste dela. Ela olhou-o como a querer adivinhar o que pensava. Os rostos tão próximos e ele sem coragem, sem saber se valeria a pena arriscar a rejeição, sem saber se queria pagar o preço de um momento.
Saíram dali. Caminharam ao longo da rua que levava à estação dos comboios, alguns rapazes falavam e riam muito alto e ele agarrou-lhe a mão no habitual gesto protector. Na estação ela queixou-se do frio e ele enlaçou-lhe a cintura, e outra vez o perfume dela a acender-lhe os sentidos. Sentiu-a tremer e aconchegar-se nele, abraçaram-se e ele beijou-lhe a testa e o nariz gelado. Te voy a echar de menos!, Y yo a ti, e a proximidade das bocas, os olhos mergulhados nos olhos em busca de um sinal, a estação com as suas luzes e ruídos de gente que ia e vinha de repente a desaparecer e a dar lugar ao silêncio da noite, o tempo suspenso na brisa fria de Dezembro, a respiração de ambos mais pesada. Ela tocou-lhe os lábios com os dedos e ele beijou-os. Agarrou-lhe a mão e a boca dele colou-se à dela. Sentiu-lhe a humidade da língua, o sabor adocicado da saliva, sentiu-lhe o corpo a encostar-se todo nela, sentiu-lhe a urgência incontida do desejo desbordante de paixão.
Quando se afastaram ambos sentiam a dor inconfessável da tatuagem recente mas não falaram do que acabava de acontecer. E não voltariam a ver-se. Por muito tempo, demasiado tempo.
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Conto original de Conceição Alves C. (... e continua, pois então!)

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