quinta-feira, maio 24, 2007

Capítulo Sexto

Quando ele a convidou para se encontrarem num fim-de-semana em La Coruña e a perspectiva de voltar a vê-lo se tornou real afastou todas as perguntas sem resposta e aceitou.

A auto-estrada estendia-se à sua frente, um corredor cinzento ladeado de cores que à medida que avançava para norte percorriam a paleta impressionista de verdes e castanhos inundados do sol de Inverno, o céu daquele Fevereiro quase primaveril na linha do horizonte sempre distante e a embriaguez da velocidade a empurrar o pé de encontro ao acelerador. Perto do Porto lembrou-se da 125 azul e sentiu-se a correr para lado nenhum. A mensagem dele no telemóvel despertou-a a tempo de evitar maiores excessos. Pedia-lhe cuidado, e ela só pensava em encurtar a distância que os separava, para terminar de uma vez com tanto sentimento contraditório.
Depois da fronteira parou numa área de serviço, pediu um café e uma água e não fosse o gosto quase desagradável do café, nunca tinha percebido porque é que os espanhóis têm um café tão mau, e teria esquecido o facto de ser estrangeira naquela Galiza tão próxima. Já a caminho de Santiago o verde da paisagem tornou-se mais denso e saiu da auto-estrada sem saber por onde seguia. Apetecia-lhe o silêncio do bosque de carvalhos centenários, como se a magia daquele lugar, que não conhecia senão das antigas histórias irlandesas que falavam dos actos heróicos dos celtas da esquina peninsular, se entranhasse na sua pele até alcançar o lugar onde a ancestralidade mais profunda ilude os sentidos. Os Gregos acreditavam que, não muito longe dali, o Cabo Finisterra, era o fim do mundo, e os Romanos, que conseguiram conquistar os filhos de Breogán, falavam das mulheres galegas com admiração dizendo-as mais ferozes que lobas ao acompanharem os homens na protecção das suas famílias. Saiu do carro e caminhou no estreito carreiro de terra amarelada desbravado entre arbustos verde esmeralda, ramos de heras e plantas rasteiras ainda sem flor, viu o tronco envelhecido cheio dos nós do tempo no enredado de trepadeiras, e soube que era ali que devia estar. Encheu os pulmões do ar perfumado do cheiro da terra húmida e sentiu-se forte naquele lugar que exalava séculos de ruralidade. A natureza entrava-lhe no corpo por todos os poros, deleitava-lhe os sentidos, numa comunhão sublime. Sentou-se e teve a certeza que a Grande Deusa, a Grande Mãe, tinha ali a sua casa de pedras e ramos, de riachos e cascatas férteis e frutos selvagens, cálice da sabedoria acumulada por gerações de um poderoso feminino. O fim do Inverno naquela encruzilhada de beleza perfeita perdida entre o ontem e o amanhã mostrava-lhe que o passado é apenas isso e que o podemos visitar mas não recuperar, que pode permanecer em nós no saber de experiências feito que nos faz entender o presente mas que nos deve servir apenas para desejar o futuro. Tal como a natureza guarda em si a memória do Inverno enquanto entra alegremente na Primavera e se prepara para o tempo de todos os frutos. Foi quando viu a mulher de rosto enrugado que a olhava sorridente. Lembrou-se das meigas gallegas e sentiu um arrepio. Nom te faço mal! Nom te afastes do caminho da Vida, a voz era profunda e parecia vir do seio da terra, do fim dos tempos, um conselho soprado pelo vento que se levanta à passagem de um cometa quando Neptuno em Aquário convida à renovação, à busca da liberdade e da satisfação dos sonhos. E o arrepio tornou-se espanto, e o medo sobrepôs-se à curiosidade enquanto os olhos da velha a seguiam pelo carreiro de terra amarelada de volta ao carro. Era hora de seguir em frente. E já na estrada, e embora se soubesse dona e senhora da sua vontade, não conseguiu fugir de um sentimento de inevitabilidade, de impotência perante o destino.

Chegou a La Coruña antes dele. A cidade fervilhava na aproximação do fim-de-semana. Seguiu pelo Passeio Marítimo até ao hotel. Apreciou a proximidade do mar e entrou decidida para fazer o check-in. Subiu até ao quarto que ele lhe tinha reservado e meteu-se rapidamente no duche. A água lavou-lhe do corpo os mais de seiscentos quilómetros percorridos, afastou o cansaço e a imagem da mulher no bosque de carvalhos pareceu-lhe apenas uma ilusão mágica. Achou-se bonita, já sem os traços da juventude, mas com aquela beleza que vem da segurança e serenidade que só podemos encontrar nas mulheres depois dos quarenta. Espalhou creme no corpo com gestos firmes, perfumou-se e vestiu-se. Retocou os cabelos e o rosto.
Pouco depois ele ligou a dizer que estava no átrio do hotel e ela pediu-lhe que subisse. Surpreendeu-a a tranquilidade com que lhe abriu a porta e lhe disse que entrasse, não era normal nela essa ausência de ansiedade. Reconheceu a envolvência calorosa do abraço dele, afastou-se, acendeu um cigarro e foi até à janela e ali se quedou ao mesmo tempo que falavam da viagem e de coisas sem importância alguma. Observavam-se. Teria dado qualquer coisa para saber o que ia na cabeça dele e sabia que ele pensava o mesmo. Ela fumava, de pé, junto da janela. Sentado na cama ele inspirava o ar que lhe trazia o perfume dela.


Conto original de Conceição Alves C. (... ainda continua!)

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